Sugestão de como cobrir o Dia do Índio para a TV
Cena de fazenda retomada por indígenas no Mato Grosso do Sul. Take em
uma latinha de cerveja aberta e indígenas rindo de algo. Locução do
repórter cobrindo as imagens: "Eles estão festejando a invasão de
trocentos mil hectares de terra. Terra que, até então, era produtiva".Por Leonardo Sakamoto - 19.04.2012
Close em um deles, no que fala errado [desfocar as crianças indígenas
com cara de pobres ao fundo]. Foco na falta de dentes do entrevistado.
Se estiverem sujos, melhor: "Estamos esperando o governo nos atender,
né?" [Edita e corta fora a parte do "Os pais dos pais dos meus pais
costumavam viver nessa terra. Hoje, minha família vive de favor em outro
terreno com outras famílias, né? Muita gente, não cabe, não dá para
plantar, né?"]
Passagem para o laboratório da empresa dona da
fazenda. Close na lágrima da cientista que perdeu parte da pesquisa com a
ocupação na plantação dos eucaliptos: "Isso era a minha vida". Se
possível, subir som, resgatando versão do Milton Nascimento de "Coração
de Estudante" que foi cantada no funeral de Tancredo Neves.
Tirar a entrevista com a liderança que fala bonito ["Na verdade, a tribo
indígena pede há 30 anos que os títulos sobre a área, uma reserva já
demarcada em 1937, sejam anulados. Não estamos pedindo nova demarcação,
apenas que se cumpra o que já foi decidido no passado"]. Não vai parecer
que é índio, vai parecer que é político. E tirar fora aquelas imagens
de crianças indígenas passando fome, refestelando-se com jaca velha.
Nosso telespectador não quer ver isso enquanto está almoçando.
Passagem para a prefeitura do município. Prefeito: "O medo é grande nas
cidades por causa da ação dos nativos". Locução do repórter: "E o
prefeito denuncia." Close no prefeito: "As ONGs internacionais e o MST é
que arregimentaram todo esse povo nas favelas de Salvador para levar
nossas terras. Eles não são nem índios. Eles parecem índios para você?"
Entra um "povo fala". Botar a idosa senhora ["Tenho medo de
vandalismo"], o comerciante ["Eles são contra o progresso, não querem
ver geração de empregos"], o policial ["Normalmente, há muitas
reclamações de alcoolismo com eles"] e o estudante com uma cara de
hippie e perdido ["Mas os índios têm direito a essas terras por serem
delas autóctones"].
Corta para o repórter na entrada da
fazenda. Diz que a paralisação das atividades de produção de madeira na
última semana fizeram o Brasil perder R$ 872 milhões em exportações
[usar dados da associação de indústrias de celulose e só dela]. Repórter
completa: "E, entre os invasores, há procurados pela polícia, como o
cacique Escambau, foragido há anos".
Volta para o estúdio, onde
o apresentador faz cara de indignação, balançando a cabeça e franzindo a
face, antes de abrir um sorriso e chamar a matéria do Dia do Índio, em
que crianças de uma escola de classe média alta de São Paulo receberam a
visita de indígenas do extremo Sul do município. Matéria abre com
imagens de jovens índios, no pátio da escola, trajados da forma como se
espera deles, dançando, dançando, dançando...
(Não é assim de jeito nenhum. Mas, na verdade, é assim também.)
Feliz 19 de abril. Feliz Dia do Índio.