Lendo Nietzsche para ler Marx


Marx e Nietzsche são os filósofos que ganharam versões populares que outros não conseguiram obter. Marx não autorizou nem Lênin e muito menos Stalin a fazer o que fizeram. Muito menos Nietzsche deu qualquer aval a Hitler. Não foram contemporâneos desses ditadores. Caso tivessem sido contemporâneos desses homens, eles teriam repudiado suas ações. Como podemos estar certos disso? Simples, basta colocar as perguntas objetivamente. Quais? Duas: Marx endossaria uma ditadura? Nietzsche apoiaria e eliminação de visões contrárias a dele?

A segunda pergunta é fácil responder com um não decisivo. O perspectivismo de Nietzsche, sua doutrina tão próxima da do pragmatismo americano, não se adequaria a qualquer regime que não aquele que pudesse permitir a liberdade de pensamento e expressão. A primeira pergunta pode causar algum embaraço, uma vez que Marx chegou a falar em “ditadura do proletariado”. Teríamos, então, de aprovar Nietzsche e livrá-lo de Hitler enquanto condenamos Marx e o tornamos uma entidade que deverá permanecer na sombra de Lênin e Stalin?
Lendo Nietzsche com acuidade e aprendendo com ele, talvez seja fácil ver que Marx pode sacudir os fantasmas de Lênin e Stalin.
Um dos bons ensinamentos de Nietzsche é sua análise da linguagem para investigar questões éticas. No livro Genealogia da moral ele assim age considerando as palavras “bom”, “mau” e “ruim”como elementos de análise. Ele as associa a uma tipologia psicológica, de caráter não empírico, de cunho estritamente filosófico. Ele diz que a palavra “bom” é utilizada com conotação avaliativa específica a partir da moral dos “fracos” ou “doentes” ou “escravos” (os “modernos”, etc.). Nesse sentido, o oposto de “bom” é “mau”. Os “fracos” são os que, sofrendo com a passagem dos fortes por sobre eles, se denominam bons – bonzinhos, os que não fazem nenhum mal –, e assim agem por o que insistem que é uma escolha. Aproveitam a liberdade e agem como sujeitos, isso é, se auto-determinam para não fazer o mal, só o bem. Nietzsche lembra que os “fortes” não entendem que possa haver opção. Na verdade ela, diz Nietzsche, a liberdade é uma invenção dos “fracos”. Os “fortes” não teriam opção de ser outra coisa. Por isso mesmo, eles não usam da valoração doentia e escrava para falar de seus adversários. Eles qualificam o oposto de “bom” como “ruim”. Eles, fortes, são bons – lutam bem e se saem bem no que fazem. Os adversários inaptos são os ruins – tecnicamente imperfeitos, se por acaso agem de modo imperfeito na luta.
Não é necessário levar ao pé da letra a tipologia psicológica envolvida nessa questão. O importante é considerar que Nietzsche chama a atenção para o fato de que a condição de sujeito depende da liberdade, mas esta é uma invenção dos fracos para poder corroer os fortes, fazendo-os naufragar na má consciência. Eles são mordidos pelo veneno moral dos fracos e começam, então, a achar que efetivamente possuem liberdade para mudar, que podem ser bons. A má consciência é isto: culpa por serem o que são. A partir daí, estão aptos para usar o par de palavras que até então não fazia nenhum sentido no vocabulário que tinham: não é mais bom e ruim, e sim bom e mau o par de opostos que adotam, e então já estão no reino dos que acreditam que não ser mau é opcional e, enfim, uma decisão – uma decisão moral.
Para serem bons, nessa nova acepção, precisam não fazer bem as coisas, mas fazer o bem, ou seja, não ferir – não passar por cima dos fracos. Quando começam a pensar assim, já sucumbiram à moral dos fracos. Há aí uma “revolução na moral”. A moral dos fracos torna-se a moral de todos e, enfim, assim, o modo de vida dos fracos impera, se torna hegemônico.
Essa análise da linguagem levada a cabo por Nietzsche está prenhe de uma posição que é altamente valorativa e, enfim, não só ética, mas política. Todavia, a análise não deixa de ser uma análise da linguagem das melhores.
Podemos tirar dessa análise de Nietzsche uma boa percepção de como ler Marx. Não temos de lê-lo sem ver que ele utiliza em sua escrita um jargão que se move por contraposições. Em geral, ele usa termos na contraposição de outros, mas para denunciar o seu contraposto. Assim, “ditadura do proletariado”, para Marx, não poderia ser lida solitariamente. Do mesmo modo que não poderíamos ler “bom” em absoluto. Temos de ler a palavra “bom” na sua contraposição com “mau” e “ruim”. Assim, em Marx, uma boa sugestão é ler “ditadura do proletariado” dentro de um jogo especial de contraposições.
Determinados filósofos do liberalismo do tempo de Marx, e de tempos depois, usaram “democracia” em contraposição à “ditadura”. Ora, a sugestão aqui é a de tomar Marx como quem usa “ditadura do proletariado” para inaugurar outra contraposição, a de “ditadura do proletariado” versus “ditadura da burguesia”; a primeira seria obviamente algo que aponta para o comunismo, e a segunda a verdadeira face da democracia enquanto regime burguês.
É claro que do ponto de vista histórico Marx teve um azar danado. Pois a democracia liberal apenas ganhou fôlego na medida em que o socialismo ou comunismo não se tornaram a “ditadura do proletariado” para fustigar a “ditadura da burguesia”, mas apenas a ditadura pura e simplesmente. Mas isso é história, não filosofia. Em termos filosóficos, podemos dizer que o importante é perceber que Marx buscou a formulação de uma contraposição que cumprisse uma dupla função: em primeiro lugar, ao chamar o socialismo de “ditadura do proletariado” sua idéia era mostrar que o oposto, como simétrico, era uma ditadura; ao criar novo par de opostos sua idéia era a de mostrar que a batalha entre duas concepções não se daria segundo o que estava estabelecido, mas sobre o seu novo vocabulário.
Não foi uma feliz idéia. Mas, em outras formulações de seu novo vocabulário, ele teve mais sucesso. Por exemplo, quando desterritorializou as palavras “burguês” e “proletário” para colocá-las no novo terreno, aquele em que tais palavras apareceram em contraposição, ele teve sorte. A partir de Marx a apalavra “burguês” nunca mais designou o habitante da cidade, e sim o “proprietário” ou o “explorador” do “proletário”; e esta palavra, por sua vez, deixou de designar aquele que tem prole para ser sinônima de trabalhador e “explorado”. Nesse novo vocabulário, aí sim, as coisas passaram a funcionar como Marx queria. Todavia, na inovação feita em relação à palavra democracia, o tiro saiu pela culatra.
© 2009 Paulo Ghiraldelli Jr. , filósofo