Em todo país diversas manifestacoes como a Marcha Mundial das Mulheres buscam visibilidade para reforçar a luta contra a violência feminina |
Estudo sobre o machismo entre jovens e novas denúncias de abuso sexual revelam o grande desafio para se mudar o panorama da cultura de violência de gênero no país.
Por Sheila Fonseca, para o Vermelho
"Eles me chamaram para ir ao carro e diziam que iam me
dar mais bebida. Eu não queria, mas acabei indo pela insistência. O carro
estava em um local deserto. Eles começaram a me beijar à força, passar a mão
nas minhas partes íntimas, nos meus seios. Fiquei desesperada e pedi para que
parassem. Eles tapavam a minha passagem me impedindo de sair”, disse uma das
vítimas da série de denúncias de abuso sexual sofridas por estudantes na USP,
uma das mais respeitadas universidades do país, durante audiência da Comissão
de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa, no dia 11 de setembro.
A estudante de 22 anos, que cursa o 4º período de medicina
da USP (FMUSP) e prefere não se identificar, ainda revela a dor e humilhação a
que estão submetidas as vítimas de violência de gênero que rompem a cultura do
silêncio: “Sofro isolamento social. Sou vista como vagabunda”, sentencia.
Esse relato se soma às estatísticas alarmantes de violência
contra a mulher no país, que incluem casos como estupro, assédio sexual,
espancamentos e feminicídio. E assim como em outros casos, a vítima sofre com o
isolamento, descrença e culpabilização.
Socióloga Patrícia Rodrigues |
“O patriarcado é uma instituição que se construiu histórica
e socialmente, o que significa dizer que os processos de opressão se reproduzem
como algo naturalizado. Constitui-se numa estrutura hierárquica que confere aos
homens o direito de dominar as mulheres, contudo esse sistema tem uma base de
sustentação que é material, a qual denominamos de divisão sexual do trabalho
que comporta dois processos: um de divisão do trabalho entre homens e mulheres
e outro de hierarquização de que o trabalho dos homens tem mais valor que o das
mulheres. A partir dessa lógica institui-se um processo sobre o qual cabe às
mulheres o âmbito da esfera privada, do trabalho doméstico e reprodutivo. Aos
homens à vida pública, o trabalho produtivo. Essa estruturação do patriarcado confere
aos homens um sistema de privilégios que garantem a eles controle sobre os
corpos das mulheres que se dá por meio do uso de diversas formas de violência
que vão desde a psicológica até a física. Tais ações são respaldadas
socialmente uma vez que numa sociedade machista compete aos homens serem os
donos do controle sobre aquilo que se considera como conduta desviante das
mulheres segundo os padrões estabelecidos. Por isso é tão difícil desconstruir
o machismo, ele é cotidiano e reiteradamente afirmado em todos os espaços”, diz
a socióloga.
A “caixa preta” do abuso sexual no meio acadêmico
Os recentes casos de estupro na USP deram início a uma onda
de denúncias de assédio sexual e violência contra mulheres e minorias nas
universidades do país trazendo à pauta questões sobre abuso e relações de poder
no âmbito acadêmico.
Além da investigação dos casos individuais, os relatos de
violência sexual, racismo e homofobia que teriam sido praticados na USP
originaram a instauração de inquérito civil pelo Ministério Público do Estado
de São Paulo. Uma CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) foi criada para
investigar casos de violência na USP e em outras unidades de ensino paulistas.
A Alesp recebeu mais duas denúncias de estupro contra alunas
da USP. Os dois relatos de abuso chegaram ao conhecimento dos deputados por
meio de um e-mail criado pela comissão para receber as denúncias. Os casos
teriam ocorrido na FMUSP, em São Paulo, e na Escola Superior de Agricultura
Luiz de Queiroz (Esalq), em Piracicaba, no interior do estado.
Contudo, a primeira sessão da CPI que seria realizada na
última terça-feira (16), teve que ser adiada por falta de quórum e foi
remarcada para esta quarta-feira (17). Para que a CPI fosse aberta era
necessária a presença de cinco dos nove deputados estaduais titulares da
Comissão de Direitos Humanos da Alesp, mas apenas quatro compareceram: Adriano
Diogo (PT), presidente da comissão, e os deputados Marco Aurélio (PT), Sarah
Munhoz (PCdoB) e Carlos Giannazi (PSOL).
Neste mês, durante a terceira audiência pública da Alesp, a
advogada Mariana Ganzarolli trouxe a público nova denúncia de estupro, dessa
vez na Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), envolvendo dois alunos
durante o evento Interunifesp, organizado por estudantes em Taquaritinga,
interior do estado entre os dias 20 e 23 de novembro.
Em entrevista à reportagem, a advogada e militante feminista
Marina Ganzarolli, uma das fundadoras do Coletivo Dandara, pertencente à
Faculdade de Direito da USP, conta que o atendimento à vítima da Unifesp está
sendo feito pelo Coletivo de Mulheres da respectiva faculdade e que a
relutância da vítima é natural dada à vulnerabilidade: “É natural que a vítima
não queira que mais detalhes sobre a agressão sejam fornecidos, a fim de
preservar sua intimidade e, principalmente, garantir sua segurança dentro da
faculdade. Sou uma das fundadoras do Dandara, mas já estou formada, não
respondo pelo Coletivo, uma vez que sou, digamos assim, membra emérita. Uma das
meninas do coletivo da Unifesp entrou em contato comigo para auxílio jurídico,
ao que pedi autorização para fazer a denúncia de forma genérica, a fim de dar
visibilidade para o fato de que as agressões não ocorreram há anos atrás e sim,
vêm ocorrendo e continuarão a ocorrer se nada fizermos. Esta denúncia, assim
como as outras que fiz, são todas iguais: a culpa é sempre do agressor. Sempre.
Ninguém pede pra ser estuprada. Tampouco merece este tipo de violência.”
Para Marina, é importante que as vítimas se sintam amparadas
e acolhidas: “É importante que as vítimas se sintam seguras e amparadas para
denunciar os agressores, preservado o sigilo de suas identidades, já que a
culpabilização da vítima é tão naturalizada em nossa sociedade que infelizmente
é um dos maiores obstáculos no enfrentamento das denúncias, sendo, em minha
opinião, um dos principais fatores que levam à subnotificação das agressões,
somada naturalmente ao despreparo dos policiais, não funcionamento das
delegacias da mulher à noite e aos finais de semana, horários em que ocorrem mais
violências contra a mulher entre outros diversos fatores”, opina Marina.
Thaís Moya
Seguindo a onda de denúncias de abuso sexual nas
universidades, a doutoranda de sociologia da Ufscar Thais Santos Moya utilizou
a sua página pessoal na rede social Facebook para denunciar o assédio moral e
sexual que teria sofrido. Thais conta que raspou a cabeça em um ato de protesto
“Raspei meus cabelos porque eu fui, duas vezes, agarrada e beijada por meu
professor e ex-orientador sem o meu consentimento. Como quase toda vítima de
assédio, passei dois anos amedrontada e coagida pelas relações de poder que
perpassam as consequências de denunciar o ocorrido. Senti-me responsável não
apenas pela minha carreira profissional, mas pela do professor em questão e
pelas consequências negativas que recairiam no Programa de Pós Graduação e nos
colegas do núcleo de estudos. Calei-me, acovardada”, revela a estudante.
De acordo com a psicóloga Telma Low, que é docente do
Instituto de Psicologia da UFAL, pesquisadora vinculada ao GEMA (Núcleo de
Pesquisa em Gênero e Masculinidades da UFPE) e também ao Grupo de pesquisa em
psicologia discursiva da UFAL, com mestrado e doutorado no Institut
Universitari d`Estudis de la Dona, na Universidade de Valencia, Espanha, o
espaço acadêmico é um cenário propício em decorrência da mentalidade classista.
“A academia é mais uma instituição que se constrói com base
no sistema patriarcal, heternormativo, racista, classista etc., ao longo do
tempo, constituindo-se enquanto lugar de um saber e poder que muitas vezes se
apresenta como absoluto, verdadeiro e hierárquico. Porém, esse modelo de
ciência positivista vem sendo questionado, por exemplo, com a entrada do
feminismo na academia. Através das teorias feministas, começamos a construir
uma leitura crítica e política não somente de como as relações de poder,
especialmente entre homens e mulheres, se constroem na sociedade lá fora, mas
também aqui dentro. De modo que podemos pensar que essas práticas de violência
dentro da academia, ao mesmo tempo que legitimam e perpetuam o modelo de
relações desiguais fruto do patriarcado, também são questionadas e denunciadas
por sujeitos que se posicionam contra as assimetrias de poder, sujeitos que vêm
tentando romper com essas hierarquizações. Não é por acaso que vemos cada vez
mais denúncias de casos de racismo no contexto das universidades, de lesbo,
homo e transfobia.”, diz Telma.